Aquarela Feita Só de Cinza

2 de out. de 2011 § 0

Terry Gilliam constrói uma distopia estranha, na fusão da ironia com a melancólica, e obtém cinema do mais puro




Diz-se que Terry Gilliam pretendia chamar seu filme de 1984 e ½, numa homenagem dupla, a Federico Fellini e a George Orwell. A história, real ou não, conta que ele teve de alterar o título com a produção de 1984, este sim uma adaptação literária da obra de Orwell. Assim, o diretor nomeou sua obra, de 1985, com o título de sua música-tema: Brazil. A música é a adaptação ao inglês de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e pontua o longa constantemente, na versão de Geoff Muldaur. Na letra traduzida, a exaltação ufanista de Barroso vira uma canção romântica e, principalmente nostálgica, que vai tocar em nervos expostos do roteiro de Gilliam, Tom Stoppard e Charles McKeown. Mas voltemos a isso depois.

Na trama, que sugere muitos ecos da obra prima do autor de Revolução dos Bichos, a sociedade, “em algum lugar do século XX”, se vê aprisionada por um governo totalitário e sem rosto, cujo regime se sustenta na paranóia e na burocracia, em níveis nunca vistos. Toda e qualquer ação necessita de papéis, carimbos, aprovações, relatórios e formulários. Há câmeras por todos os lados, numa emulação das teletelas e do Big Brother orwelliano. Bombas terroristas explodem de tempos em tempos, de forma tão contínua que deixam de causar qualquer espanto (a cena no restaurante, onde todos continuam a jantar e conversar, normalmente, após uma explosão que deixa feridos dezenas de clientes). O governo se divide numa série de Ministérios, enormes e onipotentes – e é num deles que trabalha Sam Lowry (Jonathan Pryce, indo do entediado ao histriônico em segundos, excelente). Ele é um burocrata enfastiado, claramente desagradado com sua colocação, sua vida em geral, mas é fraco demais para tentar qualquer coisa. Então segue na sua função, que executa bem, de forma confortável. Sam Lowry é inércia. Mas isso por fora: ele tem constantes sonhos, devaneios em que se vê como um guerreiro bravo e, sobretudo livre, que precisa salvar uma mulher misteriosa. E é quando essa mulher se materializa na realidade, na forma de uma motorista de caminhão rebelde ao regime, que a vida de Lowry dá a virada e o filme se descortina. Há ainda algumas pontas dignas de nota: Robert de Niro, se divertindo muito, nitidamente, como um terrorista fura-greve; Bob Hoskins como um engenheiro antipático, vestido de modo semelhante ao Mário que interpretaria alguns anos depois; Ian Holm, o chefe miúdo e incompetente; Michael Palin, o amigo médico, torturador a serviço do Estado.

A linha narrativa é entrecortada, e essa sinopse não é exatamente o resumo correto para o filme. Não há resumo correto para o filme. Partindo de algumas situações desencadeadoras de tensão e conflito, o roteiro vai se montando, de forma caótica e alucinada, assim como o mundo que representa. É importante ressaltar que Gilliam é um diretor-autor dos mais genuínos, que imprimem sua visão de cinema em cada fotograma, que possuem suas marcas registradas, inconfundíveis – sua obsessão por visuais estranhos, sua inventividade alucinada, aqui mais presentes do que nunca.  Antes desse, o diretor fazia parte do (espetacular) grupo de comédia Monty Python, dirigindo dois de seus filmes e cuidando das psicodélicas vinhetas animadas de seu programa de TV, mas é aqui em Brazil ele se encontra no auge da criatividade. Os devaneios de Lowry são belíssimos, com o personagem alado, metido dentro de uma armadura, que voa pelo céu límpido e escancara o contraste com a cidade imunda. Nas cenas “reais” impera um clima-retrô futurista interessantíssimo, onde todos usam ternos tipicamente cinquentistas e caminham por entre cenários cyberpunks dignos de William Gibson, recheados de maquinário estragado e fumaça. É uma ficção científica (com alguns curiosos toques de noir, em dados momentos) que funciona como uma fábula - a despeito do humor frenético e negro herdado dos tempos de Python - triste e escura. A odisséia de Lowry é tortuosa, uma legítima comédia de erros, onde opressão gera opressão e cada uma das tentativas de fuga e mudança se vêem esmagadas. Em seu íntimo, ele voa por sobre uma planície verdejante, recendendo à liberdade, mas que logo que se desfigura com o surgimento dos poeirentos arranha-céus impessoais, brotados do chão. O final é desolado e desolador: não há fuga possível, não há modos de escapar. Exceto pelo Brazil.

E isso nos trás de volta à música de Barroso. Ela, em uma série de variações, compõe quase toda trilha-sonora do longa, sendo tocado mais lenta, assoviada pelos personagens, tendo algumas notas tocadas esparsamente. A letra adaptada para o inglês transforma a exaltação do brasil brasileiro, de mulatos izoneiros, em uma música de amor, onde o eu-lírico rememora uma paixão vivida nessa terra longínqua, cada vez mais borrada pelo tempo e pela distância. Ele lembra do beijo embaixo da lua, a última fagulha de emoção que experimentou e diz, mais que isso, promete que um dia voltará aquela terra, mesmo que já velho, apenas para estar no lugar onde pode viver de verdade, ao menos uma vez. Durante uma existência oprimida e melancólica, a lembrança de um sentimento e a existência de um paraíso idílico é o que impele à frente, o que dá força para seguir, acreditando que um dia se alcançará de novo esse breve momento onde a chama se acendeu. Esse lugar pode já nem existir, ou estar deformado dentro da memória, pois como disse Proust, o escritor da passagem do tempo: “Os lugares que conhecemos não pertencem sequer ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade [...]; a recordação de uma certa imagem não é mais que a saudade de um determinado instante”. Mas não adianta. Se acredita nessa fuga futura pois é só isso que pode manter o corpo vivo. O Brazil de Lowry são os campos abertos de sua mente. Não importa se fisicamente ou mentalmente, lá ele está.

Now when twilight dims the sky above,
Recalling thrills of our love,
There's one thing I'm certain of;
Return I will
To old Brazil... Brazil.

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