Um Horror de American Story

21 de nov. de 2011 § 0


1. Série lançada agora em 2011, American Horror Story tem sete episódios lançados até o momento e uma grande discussão ao redor de si, sendo amplamente comentada. E é realmente um fenômeno - no sentido de que é tão viciante quanto ruim.

2. A série foi idealizada por Ryan Murphy, figura proeminente na televisão americana, criador da boa Nip/Tuck e da “não me arrisco a assistir isso” Glee. O plot gira ao redor de uma família que, desestruturada, se muda de Boston para Los Angeles, indo morar em uma casarão secular que, logo descobrem, é atormentado por um sem-fim de assombrações.

3. O grande problema é que toda a trama se estrutura em clichês, sendo movida por eles, numa relação de quase parasitismo. O primeiro episódio é a maior sensação de “já vi isso antes” dos últimos tempos (e mesmo assim, nos deixa ansiosos pelo próximo). Além disso, a história não tenta, nunca, criar realmente um clima de terror, apostando somente em sustos, fáceis. Vultos que passam pelas costas dos personagens, um ser que salta do escuro, barulhos estranhos - tudo isso embalado em uma direção sem sentido algum, que aposta em cortes aleatórios nos meios das cenas e zoom ins abruptos para tentar criar - fracassadamente - uma estranheza. Também não ajuda o fato de o elenco ser sofrível (Dylan McDermott é um exímio discípulo de Keanu Reeves), à exceção da excelente Jessica Lange e de Dennis O’Hare (que vem se revelando na televisão um bom ator, já tendo brilhado na 3ª temporada de True Blood).

4. Talvez a pobreza da roteirização deva-se a uma proposta de pastiche por parte do seriado, que pode ser encontrada já no título. O objetivo é a criação de uma história de horror americana, então dá-lhe situações típicas do terror estadounidense. Estão lá a casa velha e assombrada a lá Amityville, a gravidez sobrenatural de O Bebê de Rosemary, a atriz decadente e amargurada remetendo a Baby Jane, lendas urbanas a rodo (e há até mesmo uma idéia roubada do seriado sueco Riget - o portador de Síndrome de Down que prevê os distúbios sobrenaturais). É uma hipótese.

5. Hipótese que não necessariamente exime a série de seus pontos fracos. O argumento é fraco e, pior, não ajuda a si próprio. Talvez tendo auto-consciência de seus defeitos, os episódios acabam apostando em um ritmo frenético, 45 minutos de ação ininterrupta, para fisgar seus espectadores - e isso até funciona, especificamente no quarto e no quinto episódio, os melhores. Acontece que com isso os segredos das trama, único ponto que poderia render psicologicamente e criar o tal clima de terror, são revelados de baciada. Estando pouco além da metade da primeira temporada já temos o passado de todos os personagens já esclarecido, além das origens da casa expostas. Com a segunda temporada já confirmada, é de pensar quais as soluções que Murphy terá de lançar mão para manter o interesse do público.

6. Apesar de ostentar um 8.5 no IMDB (que ok, tem uma credibilidade duvidosa - põe Inception como o 12º melhor filme já feito) e de uma ou outra idéia interessante, uma ou outra cena bem realizada, American Horror Story é uma droga - no sentido de que, à despeito do efeito viciante que exerce, é, mesmo, um horror.



Dez Frames - Brazil

2 de out. de 2011 § 0

Vide post anterior, o imaginário frenético e a desolação futurista de Gilliam.










Aquarela Feita Só de Cinza

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Terry Gilliam constrói uma distopia estranha, na fusão da ironia com a melancólica, e obtém cinema do mais puro




Diz-se que Terry Gilliam pretendia chamar seu filme de 1984 e ½, numa homenagem dupla, a Federico Fellini e a George Orwell. A história, real ou não, conta que ele teve de alterar o título com a produção de 1984, este sim uma adaptação literária da obra de Orwell. Assim, o diretor nomeou sua obra, de 1985, com o título de sua música-tema: Brazil. A música é a adaptação ao inglês de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e pontua o longa constantemente, na versão de Geoff Muldaur. Na letra traduzida, a exaltação ufanista de Barroso vira uma canção romântica e, principalmente nostálgica, que vai tocar em nervos expostos do roteiro de Gilliam, Tom Stoppard e Charles McKeown. Mas voltemos a isso depois.

Na trama, que sugere muitos ecos da obra prima do autor de Revolução dos Bichos, a sociedade, “em algum lugar do século XX”, se vê aprisionada por um governo totalitário e sem rosto, cujo regime se sustenta na paranóia e na burocracia, em níveis nunca vistos. Toda e qualquer ação necessita de papéis, carimbos, aprovações, relatórios e formulários. Há câmeras por todos os lados, numa emulação das teletelas e do Big Brother orwelliano. Bombas terroristas explodem de tempos em tempos, de forma tão contínua que deixam de causar qualquer espanto (a cena no restaurante, onde todos continuam a jantar e conversar, normalmente, após uma explosão que deixa feridos dezenas de clientes). O governo se divide numa série de Ministérios, enormes e onipotentes – e é num deles que trabalha Sam Lowry (Jonathan Pryce, indo do entediado ao histriônico em segundos, excelente). Ele é um burocrata enfastiado, claramente desagradado com sua colocação, sua vida em geral, mas é fraco demais para tentar qualquer coisa. Então segue na sua função, que executa bem, de forma confortável. Sam Lowry é inércia. Mas isso por fora: ele tem constantes sonhos, devaneios em que se vê como um guerreiro bravo e, sobretudo livre, que precisa salvar uma mulher misteriosa. E é quando essa mulher se materializa na realidade, na forma de uma motorista de caminhão rebelde ao regime, que a vida de Lowry dá a virada e o filme se descortina. Há ainda algumas pontas dignas de nota: Robert de Niro, se divertindo muito, nitidamente, como um terrorista fura-greve; Bob Hoskins como um engenheiro antipático, vestido de modo semelhante ao Mário que interpretaria alguns anos depois; Ian Holm, o chefe miúdo e incompetente; Michael Palin, o amigo médico, torturador a serviço do Estado.

A linha narrativa é entrecortada, e essa sinopse não é exatamente o resumo correto para o filme. Não há resumo correto para o filme. Partindo de algumas situações desencadeadoras de tensão e conflito, o roteiro vai se montando, de forma caótica e alucinada, assim como o mundo que representa. É importante ressaltar que Gilliam é um diretor-autor dos mais genuínos, que imprimem sua visão de cinema em cada fotograma, que possuem suas marcas registradas, inconfundíveis – sua obsessão por visuais estranhos, sua inventividade alucinada, aqui mais presentes do que nunca.  Antes desse, o diretor fazia parte do (espetacular) grupo de comédia Monty Python, dirigindo dois de seus filmes e cuidando das psicodélicas vinhetas animadas de seu programa de TV, mas é aqui em Brazil ele se encontra no auge da criatividade. Os devaneios de Lowry são belíssimos, com o personagem alado, metido dentro de uma armadura, que voa pelo céu límpido e escancara o contraste com a cidade imunda. Nas cenas “reais” impera um clima-retrô futurista interessantíssimo, onde todos usam ternos tipicamente cinquentistas e caminham por entre cenários cyberpunks dignos de William Gibson, recheados de maquinário estragado e fumaça. É uma ficção científica (com alguns curiosos toques de noir, em dados momentos) que funciona como uma fábula - a despeito do humor frenético e negro herdado dos tempos de Python - triste e escura. A odisséia de Lowry é tortuosa, uma legítima comédia de erros, onde opressão gera opressão e cada uma das tentativas de fuga e mudança se vêem esmagadas. Em seu íntimo, ele voa por sobre uma planície verdejante, recendendo à liberdade, mas que logo que se desfigura com o surgimento dos poeirentos arranha-céus impessoais, brotados do chão. O final é desolado e desolador: não há fuga possível, não há modos de escapar. Exceto pelo Brazil.

E isso nos trás de volta à música de Barroso. Ela, em uma série de variações, compõe quase toda trilha-sonora do longa, sendo tocado mais lenta, assoviada pelos personagens, tendo algumas notas tocadas esparsamente. A letra adaptada para o inglês transforma a exaltação do brasil brasileiro, de mulatos izoneiros, em uma música de amor, onde o eu-lírico rememora uma paixão vivida nessa terra longínqua, cada vez mais borrada pelo tempo e pela distância. Ele lembra do beijo embaixo da lua, a última fagulha de emoção que experimentou e diz, mais que isso, promete que um dia voltará aquela terra, mesmo que já velho, apenas para estar no lugar onde pode viver de verdade, ao menos uma vez. Durante uma existência oprimida e melancólica, a lembrança de um sentimento e a existência de um paraíso idílico é o que impele à frente, o que dá força para seguir, acreditando que um dia se alcançará de novo esse breve momento onde a chama se acendeu. Esse lugar pode já nem existir, ou estar deformado dentro da memória, pois como disse Proust, o escritor da passagem do tempo: “Os lugares que conhecemos não pertencem sequer ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade [...]; a recordação de uma certa imagem não é mais que a saudade de um determinado instante”. Mas não adianta. Se acredita nessa fuga futura pois é só isso que pode manter o corpo vivo. O Brazil de Lowry são os campos abertos de sua mente. Não importa se fisicamente ou mentalmente, lá ele está.

Now when twilight dims the sky above,
Recalling thrills of our love,
There's one thing I'm certain of;
Return I will
To old Brazil... Brazil.

Dez Frames - Dias de Paraíso

27 de set. de 2011 § 0

Dias de Paraíso (1978) de Terrence Malick é, com toda certeza, uma das mais belas coisas já filmadas. Com uma fotografia impressionante, obra de Néstor Almendros, o filme foi todo rodado nas horas do amanhecer e do crepúsculo, somente com luz natural e quase que somente em externas, num espetáculo de matizes alaranjadas, melancólicas.


Ps: Atenção ao casarão do fazendeiro, inspirado no quadro House By The Railroad (1925), do também genial Edward Hopper.











A Estética da Dor de Cotovelo

22 de set. de 2011 § 0

As relações entre a música e os finais de relacionamento. Todo amor e toda dor – além de outras rimas melhores que essa




Em dado momento de 500 Days Of Summer, o protagonista, Tom, está imerso na fossa de desilusão amorosa na qual foi jogado pela linda e desalmada Summer. Ele é pura tristeza e sua autocomiseração leva a essa dica dada pelo seu melhor amigo: “Talvez você devesse escrever um livro. Henry Miller disse que a melhor forma de esquecer uma mulher é transformá-la em literatura”.

Não sei precisar se isso realmente saiu da boca de Miller, ou se é mais uma daquelas citações mal atribuídas, mas o que nos importa aqui é a frase proferida pelo amigo. Ou melhor: seu espírito, seu âmago. O que nos importa é essa capacidade de exorcismo das paixões fracassadas através da arte. Naquele caso se fala na literatura; o foco aqui é a música.

A música pop é um longo compêndio de canções que dizem respeito ao amor. Esse é, sem dúvida, o tema e a inspiração da maioria das canções escritas. Desde os grandes gênios (os Beatles disparando Something) até os mais duvidosos (o amor é o elemento básico, o O² da música sertaneja), todo músico já se valeu do mais envolvente dos sentimentos como ingrediente em uma composição. Assim como estamos condenados a nos apaixonarmos infinitamente ao longo de nossas vidas, seguiremos ouvindo love songs até a hora do caixão.

Mas e quando todo esse amor entorna (e ele costuma fazer isso muito)? E quando os Beatles vão de Yesterday a I’m Looking Through You? E quando ela vai e te deixa aqui, cotovelos cravados à mesa de bar, rosto curvado por sobre o copo de uísque? E aí que são compostos os broken heart albums.

Em 1975, Bob Dylan já era uma entidade. Já tinha na bagagem 14 álbuns (entre eles coisas seminais, como Highway 61 Revisited e Blonde on Blode), além de muita história. Apesar disso, estava destruído. Seu casamento de dez anos com Sara Dylan se esfacelava diante seus olhos, incrédulos. Poeta que sempre foi (e um dos maiores do mundo pop), exorcizou sua dor na composição das dez faixas que compõe aquele que talvez seja seu disco mais pessoal, aquele que já se escancara no título: Blood On The Tracks. O que temos aqui é um Dylan desolado, mas, mais que isso, um Dylan no auge da forma. A primeira das faixas sangrentas é Tangled Up In Blue, uma obra-prima de baixo marcado e banjo marcante, de nome sugestivo (algo como Enredado na Tristeza). E o clima não melhora muito: a ela segue-se Simple Twist of Fate, em que um homem perde sua mulher e se sente vazio por dentro (he woke up; the room was bare / he didn't see her anywhere / he told himself he didn't care / pushed the window open wide / felt an emptiness inside / to which he just could not relate).

As letras amargas vão se acumulando, com toda a verve do bardo folk a serviço da mais aguda das lamentações. E é em Idiot Wind que a perda da mulher que amava se personifica na raiva, sete minutos da mais violenta das raivas. Dylan sofre e odeia por isso, acusa aquela que o põe de joelhos e expõe o caráter instável dos sentimentos. Zomba (you're an idiot, babe / it's a wonder that you still know how to breathe), amaldiçoa (one day you'll be in the ditch, flies buzzin' around your eyes) e, próximo ao fim, pega o ouvinte pela garganta ao sentenciar (you'll never know the hurt I suffered nor the pain I rise above / and I'll never know the same about you, your holiness or your kind of love / and it makes me feel so sorry). O que sobra depois disso? Mais algumas das mais belas canções já escritas. Entre outras: You Gonna Make Lonesome When You Go - um brado que implora pela permanência da amada -, If You See Her, Say Hello – uma madura reflexão de alguém que já superou o fim mas sabe que aquele amor vai lhe acompanhar sempre – e Buckets of Rain, que, coberta de nostalgia, encerra esse disco, imenso em poesia.

Mais de vinte anos depois, em 2007, outro músico se sentiu a beira do abismo amoroso – pés na bunda: uma das mais atemporais das coisas. Justin Vernon, que é a banda de um homem só Bom Iver, acabou com seu antigo grupo, adquiriu mononucleose e foi chutado pela namorada. Alquebrado, se recolheu em uma cabana isolado no Wisconsin, por três meses invernais, para hibernar longe de todos, acompanhado pelo seu violão e sua dor – os dois instrumentos que o levariam a compor e gravar, lá mesmo, com alguns microfones e equipamentos simples, o disco For Emma, Forever Ago, uma tour de force de sofrimento. O trabalho é simples: gravação lo-fi, profusão de violões e uma aplicação interessantíssima do overdub, que é usado largamente, tanto nos instrumentos quanto na voz – que, aliás, é destaque aqui. Diferente, fantasmagórica, instigante, ela é o veículo perfeito para as abstratas letras de Vernon. Há aqui Skinny Love, uma das melhores músicas da década passada, que concentra a essência do disco. Como ficar imune a uma música que começa com um dolorido falsete que implora ao amor magro que apenas agüente o ano? A voz vai crescente, e o refrão é duro, cantado com uma vitalidade que sugere até mesmo a mágoa, guardando as duas questões que são o próprio motivo de existência da obra: “now all your love is wasted? then who the hell was i?

Outras letras que merecem citação são a de The Wolves (Act I and II) (someday my pain, someday my pain / will mark you (...) and the story's all over you / in the morning I'll call you / can't you find a clue when your eyes are all painted Sinatra blue) e a de For Emma, belíssima música, cujo arranjo traz metais a seu marcante ritmo, que apoia os monolíticos versos, que parecem um desencontrado diálogo, lírico ao extremo (go find another lover / to bring a... to string along / with all your lies /you're still very lovable).

Se Dylan já era consagrado e Vernon era um zé-ninguém, o brasileiro Otto tinha uma carreira de altos e baixos antes de 2009. Ex-percursionista de bandas do Mangue Beat, possuía alguns discos que flertavam com a estranha mistura de música nordestina, samba e eletrônica. Seu maior sucesso era o casamento com a atriz Alessandra Negrini. Eis que a morena, mãe de sua filha, pede a separação. O mundo deste cantor vai abaixo, assim como mundo dos outros dois acima citados. O resultado vocês podem imaginar.

Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos tira seu nome do mais conhecido livro de Franz Kafka (A Metamorfose) para representar exatamente isso: a intranquilidade do abandono. A representação abre com Crua, que por baixo de suas grandiosas cordas tem uma das mais pungentes letras “fim de caso” da música brasileira nos últimos tempos. “há sempre um lado que pesa e um outro lado que flutua”, o abandonado e a abandonante, ele afundado em mágoa, ela livre, já em outra. Mais adiante, o verso que por sua crueza é o desespero em sua forma mais bruta e sincera: mas naquela noite que eu chamei você fodia, fodia. O mais pode ser dito depois disso?

O disco é cheio de frases que resumem, concisamente, essa sensação que nos invade logo após um término, a impressão de que tudo é dor e de que todas as cores remetem ao preto do luto. Há aqui “num dia assim calado você me mostrou a vida
/ e agora vem dizer pra mim que é despedida
”, de O Leite; “aqui é festa amor
e há tristeza em minha vida
”, de Filha. O ponto alto é 6 Minutos, uma canção guiada pela poderosa guitarra de Fernando Catatau, cujas estrofes, todas, são ensaios sobre essa morte interna que é perder alguém que era uma parte de si. Quando Otto canta, quase gritando que “você me falou de uma casa pequena / com uma varanda, chamando as crianças pra jantar / isso é pra viver  / momentos únicos / bem junto na cama de um quarto de hotel”, pode-se sentir, na própria pele, sua tristeza. As promessas, os planos coloridos traçados deitados, enlaçados em uma cama de hotel, tudo perdido no tempo, como se nunca tivesse sido dito.

Bob Dylan aborda o final de um relacionamento a seu conhecido modo de contador de histórias; crônicas que abordam diferentes casos e momentos de pessoas (seus alteregos) que sofrem uma fossa. Bon Iver é monolítico em sua abstração e constrói em seu auto-exílio um disco que representa justamente isso: o isolamento que essa dor nos traz. Otto é mais agressivo, tratando daquela arrebatação que sobrevém logo após o término do relacionamento. Os três, cada qual a seu modo, honram com méritos a frase (suposta) de Henry Miller e, com experiências ruins, fazem música boa.

Então, pense naquele seu artista favorito. Por mais que você goste dele, torça em seu íntimo para que ele leve um chifre da namorada, seja rejeitado pela esposa, sofra desse mal do qual ninguém está imune. Quem sabe não sai dali mais um discaço?

Árvore de Sensações

15 de set. de 2011 § 0



1. A despeito das impressionantes imagens “científicas” - que vão desde o Big Bang até a época dos dinossauros, explosões violentas de som e cor -, o que realmente importa em A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, é seu miolo.

2. O filme começa informando a morte de um dos filhos do casal O’Brien. Quer dizer, na verdade não. Ele se inicia mesmo com um fala da personagem da mãe que traz embutida dentro de si a chave de toda significação da história. É a informação a respeito de uma dualidade na vida, a existência de dois caminhos: o da graça – caridoso, benéfico, garantia de bons auspícios -, e o da natureza – que satisfaz apenas a si próprio, que força seu caminho, que busca a infelicidade dentro da felicidade.

3. E fica claro, ao longo de 138 minutos, que a mãe é a graça (o que talvez se escancare no curto plano que a mostra a dançar, literalmente flutuando no ar) e o pai é a natureza. O grande drama do protagonista, Jack, é que, por mais que ele se afeiçoe e prefira a mãe, é nas pegadas do pai que cabem seus pés. “Eu pareço mais com você do que com ela”, diz ele a um bruto Brad Pitt, personagem de nuances, que humaniza uma figura autoritária.

4. Após o começo, tem-se uma parte das seqüências de movimentos galácticos, formação do mundo, evolução da natureza através do fogo e das ondas gigantes. Essas seqüências iniciam aí e tornam a aparecer mais tarde, pontuando a história com seu caráter opressor. Diante da história do mundo e do tamanho dos astros o homem não é nada – e Jack é menos ainda.

5. Esse caráter cósmico serve para dar grandiloquência a uma história que, na essência, é um drama familiar, como tantos que costumamos ver por aí (Tolstoi acertou no alvo ao escrever que “todas as famílias infelizes o são a sua maneira”). Mas, na verdade, esse ar austero e grave é dado muito mais pelo contexto religioso do que pelo astrofísico. A epígrafe é um trecho do livro de Jó e há inclusive uma sequência envolvendo um sermão sobre esse capítulo. Jó é o homem de quem tudo foi retirado para que sua fé fosse testada. Espera-se que ele caia de joelhos e imagine, antecipando Nietzsche, que Deus está morto. Só que Jó é homem de fé inquebrantável e supera seus problemas, sempre com fé no Senhor. Mas Jack não é tão forte assim: quando adulto se torna um Sean Penn no auge da desorientação, com seu rosto anguloso consternado, confuso. Quando criança lhe foi ensinado que Ele vive acima, nos céus. Agora – e o filme, que é, sob vários aspectos, visto por seu ponto – se pergunta: será que Ele está lá mesmo?

6. Esse tom bíblico se reforça na fotografia - e que fotografia – de Emmanuel Lubezki: sempre diurna e brilhante, à base de luz natural tanto nas cenas externas como nas internas, além dos frequentes “estouros” do sol nas lentes – é a força luminosa Dele, como um véu sobre os personagens. A trilha de Alexandre Desplat também é grandiosa e clerical, sempre em crescentes instrumentais, recheada de coros. Ainda nos aspectos técnicos, a direção de Malick é soberba, sensorial, apoiada basicamente nas imagens. Com diálogos esparsos, a maioria das falas são narrações em off feitas com frases sussurradas, tristes apelos e indagações – enquanto isso, os planos são de uma poesia poucas vezes vista nas telas. O filme não possui uma linha narrativa, ao menos não uma ao modo que estamos acostumados.

7. A Árvore da Vida não é um novo clássico, o 2001 contemporâneo que muitos alardearam. Talvez se passe na duração das imagens cósmicas, pague pelo excesso em certas passagens e decisões, tenha uma pretensão que não se concretiza. Mas Malick é um artista, na acepção mais profunda da palavra. A Árvore da Vida não é um filme – é uma experiência. Pode ter seus pecadilhos, mas é lindo de doer.