A Estética da Dor de Cotovelo

22 de set. de 2011 § 0

As relações entre a música e os finais de relacionamento. Todo amor e toda dor – além de outras rimas melhores que essa




Em dado momento de 500 Days Of Summer, o protagonista, Tom, está imerso na fossa de desilusão amorosa na qual foi jogado pela linda e desalmada Summer. Ele é pura tristeza e sua autocomiseração leva a essa dica dada pelo seu melhor amigo: “Talvez você devesse escrever um livro. Henry Miller disse que a melhor forma de esquecer uma mulher é transformá-la em literatura”.

Não sei precisar se isso realmente saiu da boca de Miller, ou se é mais uma daquelas citações mal atribuídas, mas o que nos importa aqui é a frase proferida pelo amigo. Ou melhor: seu espírito, seu âmago. O que nos importa é essa capacidade de exorcismo das paixões fracassadas através da arte. Naquele caso se fala na literatura; o foco aqui é a música.

A música pop é um longo compêndio de canções que dizem respeito ao amor. Esse é, sem dúvida, o tema e a inspiração da maioria das canções escritas. Desde os grandes gênios (os Beatles disparando Something) até os mais duvidosos (o amor é o elemento básico, o O² da música sertaneja), todo músico já se valeu do mais envolvente dos sentimentos como ingrediente em uma composição. Assim como estamos condenados a nos apaixonarmos infinitamente ao longo de nossas vidas, seguiremos ouvindo love songs até a hora do caixão.

Mas e quando todo esse amor entorna (e ele costuma fazer isso muito)? E quando os Beatles vão de Yesterday a I’m Looking Through You? E quando ela vai e te deixa aqui, cotovelos cravados à mesa de bar, rosto curvado por sobre o copo de uísque? E aí que são compostos os broken heart albums.

Em 1975, Bob Dylan já era uma entidade. Já tinha na bagagem 14 álbuns (entre eles coisas seminais, como Highway 61 Revisited e Blonde on Blode), além de muita história. Apesar disso, estava destruído. Seu casamento de dez anos com Sara Dylan se esfacelava diante seus olhos, incrédulos. Poeta que sempre foi (e um dos maiores do mundo pop), exorcizou sua dor na composição das dez faixas que compõe aquele que talvez seja seu disco mais pessoal, aquele que já se escancara no título: Blood On The Tracks. O que temos aqui é um Dylan desolado, mas, mais que isso, um Dylan no auge da forma. A primeira das faixas sangrentas é Tangled Up In Blue, uma obra-prima de baixo marcado e banjo marcante, de nome sugestivo (algo como Enredado na Tristeza). E o clima não melhora muito: a ela segue-se Simple Twist of Fate, em que um homem perde sua mulher e se sente vazio por dentro (he woke up; the room was bare / he didn't see her anywhere / he told himself he didn't care / pushed the window open wide / felt an emptiness inside / to which he just could not relate).

As letras amargas vão se acumulando, com toda a verve do bardo folk a serviço da mais aguda das lamentações. E é em Idiot Wind que a perda da mulher que amava se personifica na raiva, sete minutos da mais violenta das raivas. Dylan sofre e odeia por isso, acusa aquela que o põe de joelhos e expõe o caráter instável dos sentimentos. Zomba (you're an idiot, babe / it's a wonder that you still know how to breathe), amaldiçoa (one day you'll be in the ditch, flies buzzin' around your eyes) e, próximo ao fim, pega o ouvinte pela garganta ao sentenciar (you'll never know the hurt I suffered nor the pain I rise above / and I'll never know the same about you, your holiness or your kind of love / and it makes me feel so sorry). O que sobra depois disso? Mais algumas das mais belas canções já escritas. Entre outras: You Gonna Make Lonesome When You Go - um brado que implora pela permanência da amada -, If You See Her, Say Hello – uma madura reflexão de alguém que já superou o fim mas sabe que aquele amor vai lhe acompanhar sempre – e Buckets of Rain, que, coberta de nostalgia, encerra esse disco, imenso em poesia.

Mais de vinte anos depois, em 2007, outro músico se sentiu a beira do abismo amoroso – pés na bunda: uma das mais atemporais das coisas. Justin Vernon, que é a banda de um homem só Bom Iver, acabou com seu antigo grupo, adquiriu mononucleose e foi chutado pela namorada. Alquebrado, se recolheu em uma cabana isolado no Wisconsin, por três meses invernais, para hibernar longe de todos, acompanhado pelo seu violão e sua dor – os dois instrumentos que o levariam a compor e gravar, lá mesmo, com alguns microfones e equipamentos simples, o disco For Emma, Forever Ago, uma tour de force de sofrimento. O trabalho é simples: gravação lo-fi, profusão de violões e uma aplicação interessantíssima do overdub, que é usado largamente, tanto nos instrumentos quanto na voz – que, aliás, é destaque aqui. Diferente, fantasmagórica, instigante, ela é o veículo perfeito para as abstratas letras de Vernon. Há aqui Skinny Love, uma das melhores músicas da década passada, que concentra a essência do disco. Como ficar imune a uma música que começa com um dolorido falsete que implora ao amor magro que apenas agüente o ano? A voz vai crescente, e o refrão é duro, cantado com uma vitalidade que sugere até mesmo a mágoa, guardando as duas questões que são o próprio motivo de existência da obra: “now all your love is wasted? then who the hell was i?

Outras letras que merecem citação são a de The Wolves (Act I and II) (someday my pain, someday my pain / will mark you (...) and the story's all over you / in the morning I'll call you / can't you find a clue when your eyes are all painted Sinatra blue) e a de For Emma, belíssima música, cujo arranjo traz metais a seu marcante ritmo, que apoia os monolíticos versos, que parecem um desencontrado diálogo, lírico ao extremo (go find another lover / to bring a... to string along / with all your lies /you're still very lovable).

Se Dylan já era consagrado e Vernon era um zé-ninguém, o brasileiro Otto tinha uma carreira de altos e baixos antes de 2009. Ex-percursionista de bandas do Mangue Beat, possuía alguns discos que flertavam com a estranha mistura de música nordestina, samba e eletrônica. Seu maior sucesso era o casamento com a atriz Alessandra Negrini. Eis que a morena, mãe de sua filha, pede a separação. O mundo deste cantor vai abaixo, assim como mundo dos outros dois acima citados. O resultado vocês podem imaginar.

Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos tira seu nome do mais conhecido livro de Franz Kafka (A Metamorfose) para representar exatamente isso: a intranquilidade do abandono. A representação abre com Crua, que por baixo de suas grandiosas cordas tem uma das mais pungentes letras “fim de caso” da música brasileira nos últimos tempos. “há sempre um lado que pesa e um outro lado que flutua”, o abandonado e a abandonante, ele afundado em mágoa, ela livre, já em outra. Mais adiante, o verso que por sua crueza é o desespero em sua forma mais bruta e sincera: mas naquela noite que eu chamei você fodia, fodia. O mais pode ser dito depois disso?

O disco é cheio de frases que resumem, concisamente, essa sensação que nos invade logo após um término, a impressão de que tudo é dor e de que todas as cores remetem ao preto do luto. Há aqui “num dia assim calado você me mostrou a vida
/ e agora vem dizer pra mim que é despedida
”, de O Leite; “aqui é festa amor
e há tristeza em minha vida
”, de Filha. O ponto alto é 6 Minutos, uma canção guiada pela poderosa guitarra de Fernando Catatau, cujas estrofes, todas, são ensaios sobre essa morte interna que é perder alguém que era uma parte de si. Quando Otto canta, quase gritando que “você me falou de uma casa pequena / com uma varanda, chamando as crianças pra jantar / isso é pra viver  / momentos únicos / bem junto na cama de um quarto de hotel”, pode-se sentir, na própria pele, sua tristeza. As promessas, os planos coloridos traçados deitados, enlaçados em uma cama de hotel, tudo perdido no tempo, como se nunca tivesse sido dito.

Bob Dylan aborda o final de um relacionamento a seu conhecido modo de contador de histórias; crônicas que abordam diferentes casos e momentos de pessoas (seus alteregos) que sofrem uma fossa. Bon Iver é monolítico em sua abstração e constrói em seu auto-exílio um disco que representa justamente isso: o isolamento que essa dor nos traz. Otto é mais agressivo, tratando daquela arrebatação que sobrevém logo após o término do relacionamento. Os três, cada qual a seu modo, honram com méritos a frase (suposta) de Henry Miller e, com experiências ruins, fazem música boa.

Então, pense naquele seu artista favorito. Por mais que você goste dele, torça em seu íntimo para que ele leve um chifre da namorada, seja rejeitado pela esposa, sofra desse mal do qual ninguém está imune. Quem sabe não sai dali mais um discaço?

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